Estávamos deitados na grama molhada, brincando, como duas
crianças despreocupadas, de atribuir formatos às nuvens. Eu segurava sua mão.
Sentia um formigamento onde sua pele tocava a minha.
- Olha lá, aquela parece um cachorrinho - eu disse,
apontando a nuvem com o dedo livre.
Olhei para ele e vi que estava sorrindo.
- Uai, neste aqui, oras - respondi, soltando sua mão e
beliscando sua cintura.
- Ai, essa doeu! - ele reclamou, levantando e fazendo beiço
- agora vai ter que fazer algo para compensar.
- Tudo bem, não precisa dar uma de bebê chorão. Sabe que
não resisto a essa sua cara de cãozinho abandonado.
Sorri e fui me aproximando de seus lábios. Eles pareciam
convidativos. Molhados, doces. Fui me aproximando lentamente. Eu queria provar
de seu sabor, sentir o seu toque. Eu queria me perder em seus braços e
mergulhar...
- Ei, brother, acorda! Chegamos na rodo.
Acordei assustado. Onde estava? Quando estava? Ah é, ainda dentro do
ônibus. Estava tão cansado que acabei adormecendo. Sem graça, olhei para o
cobrador. Ele me encarava como quem pensasse “mas que sem noção”.
- Desculpe - murmurei e desci apressado. Estava ainda um
pouco desorientado, daquele jeito que você fica quando é acordado subitamente de
um sono profundo. Suspirei. Que pena que fora só um sonho... Tentei me recordar
do rosto do moço com quem sonhara, mas ele aparecia nebuloso em minha mente.
O céu estava cinzento. Ameaçava chover e eu não havia trago
guarda-chuva. Caminhei em direção à faixa de pedestre, temendo que a chuva
começasse a cair. Tinha conseguido descansar um pouco no caminho, mas os
minutos extras de sono me atrasaram.
Algumas pessoas esperavam no sinal. Uma maré de carros
flutuava pelo asfalto. Comecei a sentir um embrulho no estômago. Eu
definitivamente iria me atrasar e se tinha uma coisa que meu chefe odiava, eram
atrasos. Imaginei-me levando sermão dele na frente de todo mundo. Senti um
calafrio. Não havia nada que eu temia mais do que ser humilhado publicamente.
Com tal pensamento, meu coração começou a acelerar. Conhecia esses sintomas,
estava começando a ter um ataque de ansiedade... Ótimo. Era tudo que eu precisava agora. Observei que o fluxo de
carros havia diminuído e nada do sinal abrir. Já haviam se passado quantos
minutos? Parecia uma eternidade. Ah,
quer saber? Vi que havia uma
brecha e corri para o outro lado da rua, por pouco evitando ser acertado por um
carro.
Suspirei, aliviado, sem notar que vinha uma moto em minha
direção. Lembro de ser lançado para frente e sentir uma forte dor na cabeça.
Depois disso, mais nada.
Estava no telhado de um prédio. Nevava. Estranhei. Neve, em um país tropical? Sentia os
flocos tocarem minha pele, mas não sentia frio. Olhei para baixo e percebi que
não usava nenhuma roupa além de uma cueca azul. De repente, comecei a tremer. Abracei-me.
A neve engrossou, se acumulando no chão. Visualizei a porta que dava para as
escadas. Corri para ela, mas estava trancada. A neve acumulada no chão começava
a querer me encobrir. Já estava alcançando meus joelhos. Parecia água que aos
poucos vai enchendo um tanque. Tentei chutar a porta, nada. Lancei o olhar para
o outro lado de espaço e decidir correr até a borda do telhado. Meu nariz
escorria. Sentia minha respiração pesada. Subi no muro. No chão, a neve
continuava a subir. Em breve transbordaria. Em pânico, pulei. Senti-me caindo,
caindo, caindo. O chão se aproximava rapidamente. Preparei-me para o impacto,
tentando proteger o rosto com as mãos...
Acordei banhado em suor. Tentei me sentar, mas senti uma
forte dor e desisti. Olhei ao redor. Onde estava? Parecia um quarto de
hospital. O que tinha acontecido? De repente, alguém entrou no quarto.
- Finalmente você acordou!
Reconheci a voz da minha mãe. Ela correu até mim e me
abraçou.
- Desculpe amor, desculpe.
Sua voz estava chorosa. Ela sentou na borda da cama e
colocou sua mão no meu rosto.
- Eu fiquei tão preocupada - ela exclamou, de forma doce.
- Não se lembra? Você foi atropelado por uma moto. Bateu a
cabeça. Sofreu uma concussão, quebrou um braço e fraturou uma costela.
Ela falou isso mecanicamente, como se tivesse decorado a
informação. Concentrei-me em suas palavras. Tentei me recordar. Lembrava de
estar atrasado e de atravessar a rua, mas depois disso as memórias estavam
confusas.
- Não sabia que uma moto podia causar tanto estrago -
disse, sorrindo com o canto da boa.
- Ah, querido. Por que tinha que ser tão descuidado? Você
podia ter morrido. Não gosto nem de pensar...
Algumas gotas de lágrima começaram a brotar de seu rosto.
Ela era assim mesmo, sempre emotiva...
Ela acariciou minha bochecha e se levantou. Pegou um copo
de água e me entregou, fungando. Ela, então, começou a enxugar suas lágrimas em
uma tentativa de se recompor.
- O médico disse que você teve muita sorte. Disse que pelo
jeito que bateu a cabeça poderia ter sofrido uma lesão cerebral mais
séria.
Franzi a testa, sem saber o que dizer. Eu sei que deveria
ter tomado mais cuidado, mas o que poderia fazer agora? Minha mãe soltou um
suspiro.
- Mas o que importa é que nada disso aconteceu, graças a
Deus... Ele deve ter um plano muito grande pra você, querido.
- Sim, graças
a deus. - murmurei, em tom de deboche. Minha mãe me reprimiu com o olhar.
Ela era bastante religiosa. Já eu, nem tanto. Por anos havia sido
arrastado para a igreja com meus pais até que um dia decidi que não queria ir
mais. Não me identificava, sentia-me deslocado e discordava de muito do que era
pregado. Nem ela, nem meu pai tinham gostado muito disso. Rolou bastante drama,
mas com o tempo eles foram aceitando. Ou tolerando, pelo menos. Sabia que eles
gostavam nem um pouco de ter um filho desviado.
Ela ainda dava um jeito de mencionar Deus em grande parte de nossas conversas.
Isso me irritava um pouco. Não que eu não acreditasse de jeito nenhum em Deus –
ou em um deus - mas sabia que nem tudo podia ser do feitio dele. Ele
tinha mais coisas para se preocupar do que comigo e com meu acidente bobo. Foi
aí que me lembrei da moto que me atingiu.
- Mãe, o que aconteceu com a pessoa que tava na moto? -
perguntei.
- Não sei. Não me disseram nada quando me ligaram. Mas,
olha filho, acho que devia meter um processo nele.
- Ou nela. Mas não foi culpa dele, mãe. Ou dela. Atravessei
a rua no sinal vermelho.
- Mesmo assim, querido. Você podia ter morrido! - Exclamou.
Ela pausou e olhou brevemente para o teto. Senti que estava lutando para não
chorar novamente. O momento passou e ela voltou a me encarar.
- De qualquer forma, por que tava com tanta pressa? - ela
me perguntou.
- Tava atrasado pro trabalho.
- Ai, ai. E isso é motivo para avançar o sinal vermelho? -
Ela esticou e balançou o dedo indicador em meu campo de visão - Olha mocinho.
Daqui pra frente vou ficar de olho em você, viu?
Ela manteve seu olhar firme sobre mim por mais alguns
segundos, então se abaixou e me deu um beijo na testa.
- Mas agora, descansa. O médico disse que ainda vai te
manter mais alguns dias aqui no hospital, em observação. Vou ali ver se já vão
trazer o almoço.
- Não tô com fome – reclamei.
- Não importa. Você dormiu um dia inteirinho. Ficou muito
tempo sem comer.
Ela então saiu do quarto, decidida. Bufei. Ficaria alguns
dias preso nessa cama de hospital, ótimo. Esperava que alguém tivesse avisado
no trabalho sobre o acidente. Tinha acabado de começar no meu primeiro emprego,
não queria ser demitido tão cedo. Eles podiam demitir alguém que faltou ao
trabalho por ter sido atropelado? Esperava que não. Sempre fui péssimo em
entrevistas, fora bem difícil conseguir esse emprego.
Preciso confessar uma coisa: eu sempre tinha achado que
ficar internado no hospital era no fim das contas bem legal. Quer dizer,
tirando o fato de que se você precisa ficar internado é porque provavelmente você
está bem ruim, é uma ótima desculpa para não fazer nada o dia todo. E ser
paparicado; admito, eu gostava de ser paparicado. Mas, olha... No fim das
contas eu estava errado. Ficar internado era uma droga. Minha mãe trouxe alguns
livros, para que eu tentasse matar o tempo, e meu notebook com alguns filmes
que ela tinha pedido para minha irmã baixar para mim. E meu ipod. Mas, e eu não sei por que, às
vezes eu simplesmente não conseguia fazer nada. Tentei começar a ler um livro
sobre programação, mas não conseguia me concentrar. Tentei ver um dos filmes,
mas desisti logo nos primeiros dez minutos. Tinha mais de quinhentas músicas no
ipod e parecia estar enjoado de
todas. Nada conseguia acordar meu cérebro. A única coisa que me restava, então,
era o tédio. Peguei o celular e mandei mensagens no whatsapp para os meus poucos amigos, mas nenhum deles me respondeu.
Argh. Eu estava à beira de perder a cabeça. Decidi, então, andar pelo corredor.
Levantei com dificuldade da cama. Minhas costelas doíam,
mas tentei resistir à dor. Agarrei o suporte de soro e tentei dar uns passos.
Ai! Levei às mãos até as costelas. Doía pra caramba! Pensei em voltar para a
cama, mas estava cansado dela. Se ficasse mais um segundo sem exercitar minhas
pernas, sentia que elas iriam apodrecer. Fui andando devagarinho e aos poucos
encontrei um ritmo que minimizava a dor. Saí pelo corredor, esperando que
ninguém prestasse atenção em mim. Já tinha passado o horário de visitas, então
o corredor estava vazio. Sentia um misto de temor e excitação por estar fazer
algo "proibido". Sabia que era algo muito pequeno, mas eu tinha fama
de bom moço e para mim, algo bobo como isso já tinha um peso significante.
Dificilmente fazia algo considerado rebelde (deixar de ir à igreja era uma
exceção. Mas eu realmente não aguentava mais. Resisti muito até tomar essa
decisão). Não porque eu de fato era bom moço, mas porque morria de medo das
consequências. Em meu mundo, tudo poderia levar a uma potencial humilhação, o
que eu evitava a qualquer custo. Preferia manter essa imagem enganosa de bom
moço aos olhos dos outros - meus pais, principalmente - do que tentar
confronta-la.
Parei diante da máquina de doces. Senti minha barriga
roncar. A comida do hospital era outra coisa que me fazia detestar ficar
internado. Por que ela tinha que ser tão sem graça e sem sal? Já estava animado
com a perspectiva de colocar minhas mãos em uma deliciosa barra de twix quando lembrei que não tinha
dinheiro nenhum. Minha mãe, que estava sendo minha acompanhante, havia guardado
minha carteira em sua bolsa - eu não a deixaria jogada na cabeceira do meu
quarto de hospital. E se alguém a levasse? - e ido para casa buscar algumas
coisas que eu havia pedido.
- Também tá enjoado da comida do hospital? – escutei alguém
dizer atrás de mim. Girei. Era um garoto alto, com cabelos castanhos
encaracolados e olhos cor de mel. Ele estava apoiado em bengalas, pois uma de
suas pernas estava engessada. Em seu rosto, ele ostentava um sorriso convidativo.
- É... - murmurei. Não era muito bom em falar com
estranhos.
- Acho que tivemos a mesma ideia. - ele disse. Não sabia o
que falar. Nem o que fazer, já que não tinha dinheiro para a tão almejada barra
de twix. Dei um sorriso amarelo,
abaixando a cabeça. Deus, esperava que não estivesse ficando vermelho. Sim, eu
ficava envergonhado facilmente.
- Hm... Acho que eu já vou voltando pro quarto...
- Ué, mas você ainda não pegou seu doce.
Droga. Ele iria mesmo me obrigar a socializar? E ainda
mais, me fazer passar vergonha ao admitir que estava sem dinheiro para usar na
máquina. Senhor, que humilhação! Tudo que eu queria era sair correndo e
mergulhar novamente na segurança do tédio.
- Ah... Acho que mudei de ideia - eu disse, já dando uns
passos lentos em direção ao corredor. Ele colocou uma nota na máquina e apertou
um botão. Ouvi o barulho do doce caindo. Ele então repetiu o processo e se
abaixou para pegar sua recompensa.
- Toma - ele disse, me oferendo um twix. Salivei.
- Não precisa... - comecei dizendo, mas ele insistiu. Então
peguei.
- Obrigado. - murmurei. Ele apenas sorriu em resposta.
Podia ir embora agora? Acenei com a cabeça e fiz menção de sair, mas então ele
estendeu a mão.
- De nada. Sou o Bruno. Tô no quarto 215 - ele disse. Não
queria ser rude, então retribui o comprimento.
- Felipe. 218 - respondi, apertando sua mão - prazer. Acho
que eu já vou voltando...
- O meu quarto fica perto do seu. Posso te acompanhar ou
você quer ficar sozinho?
Quero, pensei. Mas acabei dizendo que tudo bem. Estranhos me
deixavam nervoso. Eu estava agradecido pelo chocolate, mas era um saco se
sentir obrigado a ser simpático. Fomos caminhando, os dois meio desconjuntados;
ele por causa de sua perna, eu por causa da minha costela. Não podíamos nem
comer nossos doces já que suas mãos estavam ocupadas com as muletas e as minhas
com o gesso e o suporte de soro. Seria uma longa jornada até nossos quartos.
Por mim, seria uma jornada silenciosa, mas aparentemente Bruno era daquele tipo
de gente que não suporta silêncios.
- Então, o que te traz aqui? - ele perguntou, puxando
assunto.
Estendi o braço machucado, o que indicava que era uma
pergunta boba e incentivava que mantivéssemos o silêncio. Não mencionei a
concussão nem as costelas trincadas. Ele devia estar achando que eu estava
caminhando devagar por causa dele, não porque não conseguia ir mais rápido. Ele
sorriu. Aparentemente tudo o fazia sorrir. Qualquer outra pessoa acharia minha
atitude rude, mas se ele tinha ficado chateado, não fez questão de demonstrar.
Vai ver também se sentia obrigado a ser simpático... Só que tinha uma coisa:
seu sorriso não parecia ser daqueles falsos. Parecia sincero e - preciso admitir
- bem charmoso. Seus dentes eram brancos e bem alinhados e uma covinha se
formava em seu rosto quando ele contraia seus músculos faciais.
- Você entendeu o que eu quis dizer - seu tom era
brincalhão. Ele tentava parecer legal demais.
Isso me irritava um pouco. Revirei os olhos e imediatamente me arrependi.
Esperava que ele não tivesse reparado. Com peso na consciência por estar sendo
tão antipático, decidi responder.
- Ah, um cara numa moto me atropelou. - disse
- E você? - perguntei. O sorriso tinha desaparecido de
seu... argh, muito belo (ai meu Deus, qual o meu problema?) rosto.
- É... - ele balbuciou, sem graça - engraçado... tô aqui
porque atropelei um cara com minha moto.
Congelei. Seria possível que ele fosse quem tinha me
atropelado? Não era lá uma grande coincidência, embora houvesse diversos outros
hospitais na cidade para os quais ele poderia ter ido, mas ainda assim fiquei
surpreso. Percebi que ele estava me encarando. Ele estava com uma expressão um
pouco preocupada em seu rosto. Será que estava com medo da minha reação?
- Hm... Moto preta? – perguntei, surpreso que a cor da moto
tivesse ficado registrada em minha memória - sinal perto da rodoviária?
- Aham... - ele estava definidamente sem graça – é... Eu
não te vi. Desculpa... eu... tentei frear.
Dei de ombros em uma tentativa de quebrar a tensão.
- Não foi sua culpa - eu disse - atravessei no sinal
vermelho.
- Ficou com medo de que quisesse te processar? - brinquei
Agora eu que estava bancando o sociável. Como assim?!
Ficamos em silêncio por um tempo. Dessa vez, um silêncio bastante
constrangedor. Não que eu me importasse muito com isso.
- Então... Você tá bem? - ele perguntou, ainda parecendo
estar pisando em ovos.
- Tô sim - respondi - só machuquei uma costela. Ainda tô
aqui porque me disseram que tive uma concussão quando bati a cabeça, mas... vou
sobreviver.
Ele simulou um suspiro de alívio.
- Ah, só alguns arranhões e a perna quebrada mesmo. Nem sei
por que ainda não tive alta... perdi a consciência na hora. Deve ter alguma
coisa a ver com isso. Então, você atravessa sinais vermelhos com frequência?
- Tava atrasado pro trabalho - expliquei.
- Não é muito seguro. Devia tomar mais cuidado.
- Ih, tá falando que nem minha mãe agora.
Não disse isso num tom sério, mas ele se calou. Esperei que
não tivesse ficado chateado... odiava quando pessoas ficavam chateadas comigo.
Até mesmo um desconhecido. Olhei para ele tentando desvendar o que sentia. Ele
ostentava a mesma expressão de leveza de quando me ofereceu o chocolate.
Chegamos à frente da porta do quarto dele.
- Hm... então tá. Até mais. Espero que melhore logo. - ele
disse.
- Obrigado. Você também. Boa noite.
Segui andando para o meu quarto. Mal tinha dado alguns
passos quando ouvi uma voz atrás de mim.
- Sr. Fernandes, o que o senhor que está fazendo?
Era Joana, a enfermeira que fora designada para ser
responsável por mim. Mesmo há apenas um dia no hospital, já tinha percebido que
ela era uma baixinha bem nervosa. Fazia o seu trabalho com seriedade e
responsabilidade, mas não era muito amável.
- Não quero ouvir desculpas. Vá logo para seu quarto. O
senhor não deveria nem ter saído da cama! Tá com uma costela quebrada, pelo
amor de Deus! - Ela disse, agarrando o apoiador de soro e pressionando de leve
minhas costas. Nem pensei em dizer que era para lá que já estava indo mesmo, só
obedeci.
Acordei sentindo dor. Acho que a caminhada do dia anterior
não tinha feito bem. O quarto estava escuro, mas um feixe de luz prateado
entrava por uma brecha na cortina. Ainda devia ser de madrugada. Minha mãe
dormia um sono tranquilo no sofá-cama. Movi-me tentando encontrar uma posição
indolor, uma tarefa que se provou quase impossível. Só dois dias haviam se
passado desde o acidente e mesmo assim eu já não aguentava mais. De repente,
ouvi um barulho vindo do corredor. tap,
tap, tap. Alguém andando?
Não, era pesado demais para serem passos. Tentei ignorá-lo, mas ele ficava mais
alto a cada segundo. Porém, depois de passar por minha porta, que ficava quase
no fim do corredor, o barulho pareceu começar a distanciar-se. Melhor voltar a dormir, pensei.
Fechei os olhos por alguns minutos, mas logo fui informado pelo meu cérebro que
dormir de novo simplesmente não ia rolar. O barulho agora voltara a aumentar.
Alguém deveria estar rondando por aí. Curioso, decidi levantar para conferir,
mesmo sabendo que pagaria um preço alto mais tarde por inventar de dar mais um
passeio. Bem, doendo já estava, né? Só esperava que não fosse a enfermeira
montando patrulha em frente à porta dos enfermos.
Tentei me mover o mais silenciosamente possível para não
acordar minha mãe. As rodinhas do suporte de soro rangiam. Caminhei devagar até
a porta, esperando que não tivesse nenhum obstáculo em meu caminho. Com uma mão
engessada e outra segurando o ferro do suporte, só descobriria um eventual
obstáculo ao colidir com ele, o que além de fazer barulho seria bem dolorido.
Senti um objeto redondo tocar minha barriga. Era a maçaneta da porta. Girei-a
com cuidado e coloquei a cabeça para fora, lançando meu olhar na direção do
barulho.
- O que você tá fazendo acordado? - sussurrei para a pessoa
responsável por todo aquele barulho.
- Hãn? Não entendi - a pessoa disse, enquanto se
aproximava.
Tap, tap, tap. Era Bruno. O barulho vinha de suas muletas, que
ecoavam ao tocarem o chão.
- Esse negócio tá fazendo um barulhão.
- Ah... foi mal. Te acordei? - ele estava na minha frente
agora e tentava falar baixo.
- Na verdade não. Acordei por causa da dor.
- Ah... - ele disse, com empatia.
- Não consegue dormir? – perguntei
- Não. Tô a noite toda acordado. Tenho insônia.
Se tinha uma coisa que eu gostava de fazer era dormir.
Demorava para adormecer, mas uma vez que caía no sono nem um terremoto me
acordava (só dores na costela fraturada, aparentemente). Ao adormecer, todos os
seus problemas e dores eram deixadas de lado por um tempo e você podia navegar
tranquilamente no mundo dos sonhos. Tudo bem que às vezes eu tinha pesadelos,
mas até eles pareciam mais fáceis de enfrentar do que o stress do dia-a-dia.
Não imaginava como era viver com insônia. Ficamos em silêncio por um tempo, só
olhando um para a cara do outro. Algo me dizia que não saber o que falar era
algo novo para ele. Pensei em recolher a cabeça e voltar para a cama. Quantas horas será que faltam
para o nascer do sol?, pensei.
- E aí, vai tentar voltar a dormir? - ele perguntou, antes
que eu pudesse me mover.
- Hm... acho que vou continuar andando.
- Por que não tenta dormir?
De novo alguns segundos de silêncio constrangedor. Olhei
para ele. Ele parecia bem cansado. Estava cabisbaixo, com o cabelo bagunçado e
os olhos vermelhos. O semblante sorridente de mais cedo tinha sumido. Agora ele
parecia muito mais sério, um pouco pra baixo. Bem, acredito que não conseguir
dormir faz isso com as pessoas.
- Acho que é melhor não ficar andando. Esse negócio vai
acordar o hospital inteiro - eu disse, apontando para as muletas.
- É... acho que tá certo. Quer sentar em algum lugar para
conversar? - ele perguntou - isso é... se não quiser voltar para a cama.
Parei para refletir por um segundo. Duvidava que meu
cérebro e minha costela me permitissem voltar a dormir, então decidi aceitar.
Decidimos sentar no chão mesmo, em frente ao meu quarto.
Não iria sugerir ir para o quarto dele por motivos de: vergonha, e não podíamos
sentar nos bancos em frente à enfermaria porque certamente levaríamos uma
bronca por estar fora de nossas camas (não sabia se a enfermeira Joana estava
de plantão, mas era melhor não arriscar). Sentei alguns centímetros afastados
dele. Era uma noite quente, mas mesmo assim podia sentir seu corpo irradiando
calor.
- Então, em que você trabalha? - ele perguntou.
- Estagio em um tribunal. Faço ciência da computação.
- Acabei de terminar a faculdade de comunicação. - ele
respondeu, pronunciando as palavras de uma vez só, como se quisesse dize-las o
mais rápido possível e então partir para o próximo tópico.
Comunicação. Por que será que eu não estava surpreso?
- Já trabalha? - perguntei. Ele desviou o olhar e franziu a
testa. Será que tinha tocado num ponto sensível?
- Não precisa responder se não quiser - adicionei, tentando
evitar criar uma situação constrangedora. Ele relaxou os músculos do rosto.
- Não, tudo bem. É que tô naquele clássico período em que
você termina a faculdade e não sabe o que vai fazer da vida
- Olha, se servir de algum consolo, tenho estado nessa fase
a minha vida toda.
Seu lábio superior se moveu, formando um breve sorriso, e
ele balançou a cabeça.
- Por que escolheu computação, então? - ele perguntou.
- Lido melhor com computadores do que com pessoas. Como
você já deve bem ter adivinhado - eu respondi, em tom de brincadeira.
Novamente, ele sorriu. Mesmo que agora parecesse mais
tímido, como essa criatura sorria! Não me achava tão engraçado assim. Mas tenho
que confessar que até gostava que ele tivesse essa reação. Estava começando a
simpatizar com seu sorriso. O que disse para Bruno era verdade. Eu não tinha
tanta certeza sobre o que fazer com minha vida, mas de uma coisa tinha certeza:
não queria de jeito nenhum trabalhar interagindo com pessoas. Desmontar um
computador? Fazia isso rapidinho. Ir a uma festa? Não, obrigado.
- Nem teria percebido se não tivesse falado - ele disse, me
lançando uma piscadela. Pelo menos eu acho, posso muito bem ter imaginado essa
parte. Fiquei tentando pensar no que falar. Uma das coisas que me faziam evitar
conversas, principalmente com estranhos, é que, uma vez iniciada a conversa, eu
nunca sabia como agir; mas mesmo assim não queria que me achassem chatos e
desinteressantes (embora eu fosse!), então ficava me esforçando para achar um
tópico. Não era uma tarefa fácil. Meu cérebro dava diversas voltas, tentando
achar algo remotamente interessante, e muitas vezes eu acabava soltando algo
estúpido.
- Em que área da comunicação se formou? – perguntei, mas
logo me arrependi. Não disse que facilmente falaria besteira? Repreendi-me
mentalmente. Ele - não - quer - falar - sobre - isso.
Ele parecia um pouco incomodado.
- Ah... Desculpa ficar insistindo no assunto.
Não tinha tanta certeza de que estava tudo bem mesmo. Ai
meu Deus, lá vinha silêncio de novo. Geralmente eu não me importaria. Preferia silêncio, mas não nessas
circunstâncias. Ele não era bom em comunicação? Por
que eu que tinha que ficar falando? Mais cedo, quando o encontrei perto da
máquina de doces, ele parecia estar bem disposto a conversar (e eu bem disposto
a me calar). Alguma coisa não estava certa.
- Quantos anos você tem? - perguntei, só porque não
consegui em pensar em mais nada para dizer.
- 21. Hm... cor preferida?
- Verde - ele respondeu, sem titubear.
- Hm... lasanha. E chocolate, claro. Esporte preferido?
- Não sou tão fã de esportes, mas nado desde criança. O
seu?
- Praticar, não pratico nenhum. Gosto de assistir rúgbi,
mas... não tem muito lá a ver com o esporte em si.
- Nada. Deixa pra lá. É... sorvete preferido?
Podia ver que ele começara a relaxar. Seu semblante parecia
retornar àquele de horas atrás.
- Desculpa ficar te questionando assim. É que realmente não
sou bom em conversar.
- Tudo bem, estou gostando.
Parando para pensar... tinha que admitir que também estava
gostando.
- Hm... Hobbies? - perguntei.
- Cinema. Música. Sabe, o básico. E viagens. Conta?
- Conta! Mas em que sentido? Você viaja muito?
- Bem... Viajo menos do que gostaria. Mas eu gosto de
passar meu tempo planejando... pesquisando sobre lugares em que queria ir.
- Parece interessante. E onde tem vontade de ir?
- Acho que ultimamente... é... Europa. Tava querendo ir
mochilar pela Europa este ano. Começaria em Dublin, então... Londres, Amsterdã,
Bruxelas, Paris, Barcelona, Lisboa, Zurique, Roma, Budapeste, Berlin e Moscou -
ele olhava para o teto. Parecia estar divagando. Falava como se já estivesse
repassado esse plano em sua cabeça antes por várias vezes - Sabe... eu queria
tirar um tempo. Conhecer novos lugares, respirar novos ares... antes de decidir
o que vou fazer da vida.
- Parece bem legal! Olha, acho um saco essa ideia de que
você tem que chegar na vida adulta sabendo exatamente quem você é e o que vai
ser. Quer dizer, quando é que a gente teve tempo para de fato parar para pensar
sobre isso tudo? Da escola, você já é jogado na faculdade e obrigado a escolher
o que vai fazer para o resto da vida. É opressivo! Nem todo mundo planeja a
vida inteira desde pequeno...
Tinha me exaltado e levantado o tom. Senti o ímpeto de me
desculpar, mas ao virar o rosto vi que seus olhos cor de mel estavam fixos em
mim. Nunca tinha visto olhos dessa cor antes. Os dele eram lindos. Mas não era só
por causa da cor... eram profundos, como se escondessem as respostas para os
mistérios do universo. Agora, seus olhos pareciam marejados, tristes, e a
leveza que começara a surgir em sue semblante há pouco já tinha desaparecido.
- É... eu concordo. - Ele murmurou e, então, afastou o
olhar.
- Então, já tem uma data pra ir?
- Não... é só um plano. Meus pais... - ele mordeu os
lábios. - Deixa pra lá.
Nesse momento senti uma grande simpatia por ele. Geralmente
eu não forçaria ninguém a falar nada que não quisesse. Deus sabe que eu odiava
quando faziam isso comigo. E eu mal o conhecia! Mas algo me dizia que ele
precisava libertar o que estava preso dentro de si. Eu era péssimo para
conversar, mas me considerava um ouvinte decente.
- Eles não te apoiam? - eu perguntei, tentando transparecer
leveza. Não queria que ele se sentisse desconfortável.
- Não mesmo. Acham que eu já deveria ter arranjado um
emprego e me estabelecido. Eu tentei, mas... sei lá. Nem sei se quero ser mesmo
jornalista. Eu só queria que eles saíssem um pouco das minhas costas. Que me
deixassem respirar...
- É... pais podem ser realmente sufocantes.
- E o pior é que odeio desapontá-los, sabe? Sinto que eles
me criaram para ser alguém que eu não consigo ser.
De repente senti um aperto no coração. Suas palavras
flutuaram pelo ar e me atingiram bem em cheio. Eu entendia exatamente o que ele
estava falando. Amava meus pais e tentava ao máximo não desapontá-los. Sabia
dos sacríficos que eles tinham feito por mim e minha irmã, mas nada que eu
fazia parecia ser o suficiente para compensar o fato de que eu era... não, não
iria deixar meus pensamentos chegarem até esse ponto. Não queria ficar
deprimido agora. Não iria me fazer bem e certamente não iria ajudar Bruno.
- Você acredita que o amor deles é incondicional? – ele me
perguntou.
O olhou por alguns segundos, saber exatamente o que
responder.
- Acho que isso não existe. - declarei, enfim - Não
existe nada que seja incondicional. Não só o amor, mas na
vida, sabe? Porque não há como viver sem expectativas. Você pode querer amar e
apoiar seus filhos, independente das circunstâncias, mas acho que no fundo você
sempre os comparará àquilo que secretamente queria que eles fossem. Ou àquilo
que queria que eles estivessem fazendo.
Bruno deixou escapar um longo suspiro.
- Argh - ele murmurou - tá quente hoje, né?
- Bastante – respondi, me abanado com a mão.
- Tive uma ideia - ele disse - que tal a gente tentar subir
lá no telhado. Deve tá mais fresco. É uma ideia louca, mas... sei lá, sempre
vejo isso nos filmes.
- Eu topo - disse, tentando me levantar - só que vai levar
um tempo pra chegar lá, com.. você sabe, as enfermeiras e seguranças, meu troço
do soro e suas muletas.
Pensei na cara de reprovação da enfermeira Joana se pegasse
a gente. Imaginei-a puxando nossas orelhas como se fossemos dois colegiais e
nos dando o maior sermão. Um pânico começou a se formar em meu interior, mas
fiz o meu melhor para impedi-lo de crescer. Faria isso. Não dizem que só se
vive uma vez? Sempre achei essa frase bem tosca, mas... vai ver quase morrer
mudou algo em mim. Nossa, que pensamento mais tosco ainda! Não queria ser
desses que passam por uma experiência traumática e de repente acham que
sofreram algum tipo de catarse e que agora são pessoas diferentes. Tanto faz.
Faria isso! Respirei fundo, alcancei o tubo que levava soro para minhas veias e
o arranquei. Senti uma pontada de dor, mas ignorei.
- Pronto. E... Deixe suas muletas no meu quarto. Eu te
ajudo. Você pode se apoiar em mim.
- Tudo bem. Obrigado. E quanto à vigilância, a gente dá um
jeito.
- Você sabe onde é o acesso ao telhado, pelo menos? - eu
perguntei.
- Não. - ele confessou e ambos caímos na gargalhada, que
ecoou pelo corredor vazio. Vendo que o barulho poderia acordar os outros
pacientes, tentamos nos conter. Nem estava acreditando que estaria prestes a
viver uma aventura. Boba, se você parar para pensar; mas no meu mundo, era de
fato uma aventura.
No fim das contas não foi tão difícil assim chegar ao
telhado. Pelo que entendi, houve algum acidente em alguma boate ou sei lá o que
e muitas pessoas estavam chegando na emergência, então a maioria dos médicos e
enfermeiros em plantão estavam mais concentrados em cuidar deles do que
perguntar a dois jovens o porque de estarem perambulando por aí. Também não foi
tão difícil nos locomover quanto imaginei. Deixamos as muletas de Bruno em meu
quarto e ele usou meu ombro como apoio. Foi um tanto complicado, mas logo
achamos uma cadeira de rodas. Empurrar uma cadeira de rodas só com uma mão não
era tarefa fácil, mas foi só até chegarmos ao elevador. Depois, foi só procurar
a porta do telhado que, hey!, como nos filmes, estava destrancada. Quem diria?
O telhado do hospital não era muito amplo. Bruno sugeriu
que sentássemos na borda, o imediatamente me fez me lembrar do meu sonho da
noite anterior. Não era supersticioso, mas estar em um telhado na noite
seguinte após ter sonhado que caia de um não era um bom sinal. Dava-me
calafrios. Sugeri, então, que nos acomodássemos no espaço do heliporto, que
ocupava a maior parte do telhado. Esperava que nenhum paciente vindo do
acidente precisasse ser transportado de helicóptero.
Sentamos. Vira e mexe ouvíamos o barulho de sirenes e
podíamos ver as luzes coloridas se fundindo às bolinhas laranja dos postes.
- Parece que foi um acidente feio. Você entendeu o que
aquelas enfermeiras falaram? – Bruno perguntou.
- Hm... Acho que foi um incêndio numa boate.
- Nossa... Espero que ninguém tenha ficado muito ferido
Respirei o ar seco, quente e provavelmente poluído da
cidade e por um segundo desejei estar de volta àquele sonho do ônibus, deitado
na grama molhada e cercado de árvores que liberavam ar fresco.
- Será que vamos receber alta amanhã? - Bruno perguntou.
- Acho que sim. Com tantos pacientes, acho que vão precisar
dos quartos.
- Verdade - Bruno pausou e inspirou profundamente - Nossa,
nem imagino o quão assustador deve ter sido para essas pessoas. Acho que
incêndio é um dos meus maiores medos.
- Realmente. Ainda mais em um lugar entupido de gente. Por
isso que eu prefiro passar meus sábados a noite em casa.
- Sério? Eu também. Você bebe?
- Não muito. Não gosto do gosto. E você?
- Às vezes. Mas geralmente sábado à noite tô em casa
comendo pizza, bebendo coca e assistindo Netflix.
Sorri, simpatizando com sua resposta. Não esperava que ele
fosse do tipo de cara caseiro. E... pizza e coca? Discretamente, tentei reparar
no seu corpo. Ele usava uma calça larga e uma camiseta branca básica. Não tinha
como ter certeza, mas parecia que ele estava em forma. Não era muito magro,
tinha ombros largos, braços um pouco fortes e... eu não conseguia ver nenhum
indicio de barriga marcado pela camisa. Vai ver ele tinha um bom metabolismo.
- Você malha? - deixei escapar e imediatamente senti minhas
bochechas corarem. Ele pareceu surpreso com a pergunta.
- Não gosto. - ele respondeu, com um olhar curioso - por
quê?
- Ah... é que... pizza e coca. Não é muito saudável. Meus
fins de semana seguem o mesmo esquema e... - apertei uma gordurinha na lateral
da minha barriga que eu odiava. Deus, só estava cada vez passando mais
vergonha. Por que estava fazendo isso? Engraçado, parecia que já estava me
acostumando com a presença dele, o que geralmente não acontecia tão fácil.
Geralmente ficava tenso na frente de pessoas desconhecidas e falava pouco. O
problema é que quando relaxava, coisas inapropriadas e vergonhosas começavam a
saltar da minha boca. Senti um incomodo no estômago. Não queria que ele me
achasse estranho. Por algum motivo, queria que ele gostasse de mim.
- Acho que a natação ajuda a manter o corpinho sarado - ele disse em tom de
brincadeira e pude ver que ele sorria com os olhos. Não mostrava nenhum sinal
de constrangimento.
- É, pior tá ajudando mesmo, viu? - eu disse, mordendo o
lábio. Até soltei um som parecido com um breve assobio. PUTZ. O que tá acontecendo comigo?? Senti minhas bochechas pegarem fogo.
Virei o rosto antes que ele pudesse mostrar qualquer reação e encarei o vazio à
minha frente. Quando olhei para ele novamente, percebi que tinha deitado no
chão. Seus olhos encontraram os meus e senti que ele me incentivava a copiá-lo.
Tentei fazê-lo, sentindo minhas costelas gritarem em protesto. Deixei escapar
um gemido de dor.
- Ainda tá doendo muito? - ele perguntou.
- Um pouco... Continuo esquecendo dessas malditas costelas
Tentei me ajeitar para tentar encontrar uma posição mais
confortável. Percebi que agora estava quase tocando seu braço. Lancei meu olhar
para o céu. Era uma noite cinzenta, sem luar. Em breve a madrugada teria fim.
- Odeio que da cidade não dê para ver as estrelas -
comentei.
- É... eu também. Queria que tivesse algum lugar com menos
poluição visual por aqui.
- Você já foi acampar? - perguntei.
- Ah, o tempo inteiro. Meu pai adora. A família toda vai.
- Eu só fui uma vez. Era pequeno, então não sei onde era,
mas lembro de sentar em volta da fogueira com os meus pais e a minha irmã,
comer pão de alho, cantar músicas antigas e ficar observando as estrelas. – suspirei
- Bons tempos...
Senti-me nostálgico. Tive uma infância feliz. Sentia
saudade de como as coisas pareciam fáceis antigamente. Bem, na verdade não
parecia nada, já que quando você é
criança, não fica pensando em como as coisas são fáceis. Essa percepção vem
mais tarde, quando a vida começa a exigir mais de você.
- Você se dá bem com sua família? - Bruno perguntou. Pensei
por um segundo.
- Acho que sim. Somos só eu, meu pai e minha irmã. Ela é
mais nova, tem 15 anos. Os outros parentes moram longe, não tenho muito contato
com eles. E você?
- Ah, eu tenho uma família bem grande. E todo mundo é muito
próximo... o que é bom, porque sou filho único, então tinha companhia dos meus
primos quando era pequeno.
- Deve ser difícil ser filho único, muita pressão. -
comentei.
- E é mesmo. Te falei, mais cedo né? Meus pais são um saco às
vezes... como hoje, mas até que a gente se dá bem sim.
- Discutiu com eles? Por isso que tava meio pra baixo
quando te encontrei no corredor?
Ele abaixou os olhos. Acho que eu estava sendo evasivo
demais.
- Desculpe - eu disse - geralmente eu não sou tão enxerido
e falador assim.
- Tudo bem. Eu gosto de falar com você.
Senti um breve aperto no coração ao ouvir isso. Não entendi
muito bem por que. Fiquei em silêncio, com medo de soltar mais coisas que me
fizessem me arrepender depois.
- Seus pais te pressionam tanto quanto os meus? - ele
perguntou, quebrando o silêncio.
- Hm... acho que não. Nunca fui de dar muito trabalho então
acho que não se preocupam muito.
- Eles sabem que você... é... - ele começou, fazendo um
gesto com a cabeça.
- O que? - perguntei, começando a entrar em pânico.
Levantei - não tão rápido como gostaria - e me afastei dele um pouco.
Será que ele estava perguntado o que eu achava que estava perguntando? Ele
também se sentou.
- Desculpa - ele disse, constrangido - é que percebi que
tava meio eu me olhando... geralmente sou bom em detectar essas coisas. Não
quis ofendê-lo.
Tudo o que eu queria nesse momento era correr até a borda
do telhado e pular lá de cima. Sentia meu coração querer saltar da minha boca.
Senti lágrimas começarem a querer brotar dos meus olhos e minhas pernas
tremerem. ANSIEDADE MODE ON.
Droga... Por que estava reagindo assim? Sentia-me completamente
humilhado. Eu sempre fora bom em esconder. Quer dizer, até hoje meus pais (super
religiosos e super preconceituosos) não tinham reparado. Só uma amiga sabia.
Não podia arriscar que essa informação vazasse por aí. Será que era tão
óbvio assim? Imaginei Bruno apontando um dedo na minha cara, gargalhando e
gritando "EU SABIA, SEU BIXA hahahha." Isso era algo que com certeza
alguns dos meus colegas de trabalho fariam.
- Felipe, você tá bem? - percebi um tom de preocupação em
sua voz. Ele colocou uma mão em meu ombro. Senti uma corrente elétrica
percorrer meu corpo e o afastei.
- Acho que a gente devia voltar - murmurei e tentei
levantar. Droga de costela que não me deixava me movimentar como eu queria.
- Espera - ele disse - por que tá reagindo assim? Eu falei
algo demais?
Desisti de sair correndo, mas ainda sentia meu corpo
tremer. Tá, ele podia não apontar um dedo na minha cara, mas depois desse
papelão todo... eu não tinha coragem de encará-lo. Senti que deveria ao menos
uma explicação, mas não conseguia juntar as palavras.
- Acho então que seus pais não sabem... - Bruno disse,
parecendo estar medindo cada palavra - tudo bem. É normal. É uma droga, mas
infelizmente acontece muito.
Assenti com a cabeça, ainda sem olhar para ele.
- Religiosos? - ele perguntou. Assenti novamente.
- Me assumi com 15 anos. - ele continuou - Não foi lá uma
grande surpresa pros meus pais e eles aceitaram bem. Mas não quer dizer que não
seja difícil... Sei como tá se sentindo.
Ainda não conseguia expressar nenhuma reação além de
assentir com a cebaça.
Dei uma risada sarcástica. Achava isso tão ridículo. Fica melhor. It gets better. As pessoas realmente falavam isso?
Pensava que era só um slogan. E como
ele podia saber? Não conhecia o ambiente em que eu vivia. Ele não sabia como
era um dia perceber que você era aquilo que seus pais disseram a vida inteira
que era errado, monstruoso, um
pecado dos grandes. E o pior
é que eu tinha consciência de que não ia conseguir esconder para sempre.
Aparentemente já não estava conseguindo... e quando o dia chegasse, isso ia
destruí-los. Parece exagero, mas eu sabia disso. O modo como comentavam em casa
sobre as ações da comunidade lgbt... Eu via ódio em seus olhos. Irracionais... Tentava não causá-los
problemas e estava fazendo o possível para ser bem sucedido porque assim, quem
sabe quando finalmente a verdade viesse à tona... não iria parecer tão ruim.
Mas no fundo, eu sabia que eles nunca mudariam de opinião. Odiava que as coisas
tinham que ser assim. Mas era o que era.
Não consegui mais segurar e sentir as lágrimas brotarem dos
meus olhos. Em alguns segundo estava chorando de verdade. Eu fungava. Era mais
do que eu conseguia aguentar. Tentava muito não pensar nessas coisas, porque
toda vez que meus pensamentos seguiam por esse caminho eu desmoronava. Mas era
a primeira vez que alguém testemunhava. Droga, por que ele tinha que estar ali?
Por que ele tinha que ter feito essa pergunta? Droga... Mas era culpa minha. Se
eu não tivesse dado espaço e falado demais ele não iria se sentir a vontade
para fazer perguntas pessoais. Ou talvez ele nem achasse que fosse lá muito
pessoal. Quer dizer... A maioria das pessoas não tem muito problema com isso,
né? É algo normal, eu acho. Acho
que eu que não sou normal.
Sentia os olhos de Bruno fixos em mim.
Deus, eu só queria que ele fosse embora. Queria gritar pra que ele fosse embora, mas nada saia. Foi então que senti
que ele se aproximava. Senti seus braços em volta de mim. Permaneci imóvel.
Senti o calor de seu corpo me envolver. Queria afundar em seus braços. Virar pó.
Minha respiração ficou mais pesada. Senti vontade de berrar.
- Tá tudo bem - ele murmurava - Pode colocar pra fora
Não sei por quanto tempo chorei, mas finalmente as lágrimas
cessaram. Afastei-me dele. Com a mão livre, tentei limpar meu rosto. Respirei
fundo. Já que ele não sairia dali, sabia que uma hora teria que enfrentá-lo.
Levantei o olhar esperando achar... O que? Pena? Embaraço? Raiva, até? Ele era
uma pessoa decente demais para ter fugido, mas apostava que estava me julgando
pelo meu controle inexplicável e que agora ia dar no pé o mais rápido possível.
Quem ia querer lidar com alguém tão patético que surtava por uma coisa tão
patética? Meu coração estava inquieto. Estava com medo de procurar seu olhar,
mas o fiz mesmo assim. Arranca
o band-aid de uma vez, Felipe. Você não precisa vê-lo nunca mais, de qualquer
forma.
Ele me encarava. Tentei desvendar o que seu olhar me dizia.
Surpreso, percebi que não era o que eu esperava. Poderia ser... compaixão?
Compreensão? Pensei ter sentido uma brisa fria soprar e arrepiei.
Ficamos encarando um ao outro por alguns segundos, sem
saber o que falar. Acho que não precisava de palavras. Via em seu olhar que ele
entendia. Aparentemente não me julgava. Ele mordeu o lábio inferior e então se
aproximou. Levou uma mão até minha bochecha e a acariciou de leve. Senti um calor
onde me tocava. Ele parecia incerto de seu próximo passo. Não demonstrei
resistência. Podia sentir cada batida do meu coração. Mantinha minha respiração
em um ritmo constante.
Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte.
Ele então pareceu chegar a uma decisão sobre o que estava
prestes a fazer. Lentamente foi aproximando o rosto, seus olhos fixos nos meus.
Seus olhos queimavam. E então seus lábios tocaram os meus. Gentis, macios. Pude
sentir cada célula do meu corpo acordar e entrar em profunda comoção. Eu o
beijei de volta. Saboreei cada canto de sua boca. Inspirei o seu ar. Ele me
acomodou em seu abraço e eu levei minha mão ao seu cabelo. Permiti-me perder-me
naquele momento. Expulsei qualquer pensamento que não fosse seus lábios indo de
encontro aos meus.
E então acabou. Ele se afastou lentamente e meu corpo todo
protestou. Ele sorriu. Toquei sua testa com a minha. Meus pensamentos estavam
confusos demais para que eu conseguisse pronunciar alguma sentença coerente. Eu
não sabia se lembraria nem de como se andava se tentasse levantar agora. Não
sentia mais as costelas doerem. Senti os músculos do meu rosto se contraírem e
percebi que também estava sorrindo. Enterrei minha cabeça eu seu peito e ele me
segurou gentilmente em seus braços. Desejei poder ficar assim para sempre.
Olhei para o horizonte e encarei a sinfonia de cores que se
formava. Suspirei. Um novo dia começava.